Pular para o conteúdo principal

O caso sombrio do Sr. Expedito



Dia 27 de Janeiro 2010.
Nove horas da manhã; o dia estava ensolarado com céu azul e muitas nuvens, porém o sol parecia um prenúncio de chuva para aquela tarde; todo o mês de Janeiro tinha cumprido um ritual que se iniciava com céu claro durante as manhãs, seguido de muito calor no princípio de tarde; calor esse que chegou a alcançar mais de quarenta graus em certos dias e, no final das tardes estava ocorrendo fortes pancadas de chuva que vinham transtornando a vida de grande parte das pessoas, fazendo com que os rios transbordassem e inundando vias e casas de vários municípios.
A ambulância do corpo de bombeiros ficou parada em frente a uma das casas mais afetadas pela enxurrada anterior que atingiu vários municípios no Estado do Rio de Janeiro.
Os paramédicos foram obrigados a pedir auxilio aos homens da defesa civil para que pudessem entrar na casa; porque ela estava totalmente trancada, tanto portas quanto janelas. Era um domicílio antigo localizado na cidade chamada Mesquita, construído no início do século XX. A casa fora edificada abaixo do nível da rua e, portanto, ainda tinha um pouco da água barrenta trazida pelo grande volume da enchente que atingira aquela residência dois dias antes; o quintal pequeno que circundava o lugar não possuía nada a não ser um varal para estender roupas, sem nenhuma roupa nele; um tanque para a lavagem da roupa, que parecia não ser usado há dias e uma enxada velha que o proprietário provavelmente utilizava para cultivar algum tipo de pequena horta particular junto ao muro; horta essa que agora estava submersa em pelo menos três palmos de lama e água fedorenta deixada pela chuva.
Nas paredes a marca de até aonde a água chegou no dia da última chuva; cerca de um metro. Essa marca parecia uma faixa amarelada sobre a tinta velha das paredes.
A casa, uma espécie de chalé, tinha apenas uma porta e uma janela na frente; a tinta era antiga e surrada pela passagem do tempo, o telhado em formato triangular construído por telhas confeccionadas em uma olaria antiga no município e que hoje em dia já não existe mais; a porta de madeira não permitia ver nada dentro do domicílio, era inteiriça e não possuía nada além da maçaneta.
A janela de igual modo também tinha toda a armação feita em madeira, mas possuía os vidros que por sinal estavam empoeirados e embaçados; eles não permitiam ver muito do interior até porque por detrás da janela havia uma cortina do que parecia ser um tecido rendado e isso acabava contribuindo ainda mais para cortar a visão daqueles que estavam do lado de fora.
Os homens da defesa civil rodearam a casa e tentaram abrir a porta dos fundos, mas também encontraram muita dificuldade, como se algo estivesse servindo de barreira pelo lado de dentro.
Aquela força de salvamento estava ali presente naquela manhã por ter recebido um telefonema de um dos moradores vizinhos à residência, informando que ali morava um homem conhecido como Sr. Expedito e que desde o dia da enchente as pessoas não o tinham visto durante as noites que era o seu horário habitual de perambular pelo quintal e pela rua; não o viram nem mesmo para falar sobre a chuva nem o viram tirando água de dentro da casa; o homem havia desaparecido, mas como nenhum dos vizinhos o viu sair, ficaram preocupados com o que de pior podia ter acontecido com ele e entraram em contato com a defesa civil que por sua vez acionou o corpo de bombeiros também.
Segundo os moradores locais, que estavam espalhados pela rua observando atentos no momento em que os homens vasculhavam o quintal; o Sr. Expedito era um homem recluso, sempre fora assim, mas de uns tempos para cá estava muito pior; passou a sair somente durante as noites e em altas horas para evitar o contato com outras pessoas. Corria um boato nas circunvizinhanças de que ele estaria sofrendo de uma grave doença terminal e, portanto, teria ficado deprimido, e por isso estava procurando evitar ao máximo qualquer contato com outras pessoas para não falar a respeito e também para não ser visto em seu estado cada dia mais fragilizado. Algumas vizinhas afirmavam que o tinham visto conversando com um familiar que o visitou alguns dias atrás.

De fato, embora o Sr. Expedito vivesse completamente sozinho já há bastante tempo, às vezes ele era visitado, sempre à noite, por um homem desconhecido para os moradores da rua, provavelmente fosse um neto ou sobrinho, mas as visitas foram diminuindo gradativamente até que por fim o homem vinha raramente falar com ele, ficava pouco tempo, trazia sacolas escuras que retirava do porta-malas de um carro sedan grande, bonito e preto; em seguida o homem ia embora.
Alguns dias antes da enchente as pessoas viram o Sr. Expedito conversando no portão à noite com aquele mesmo homem, supostamente seu neto, era um homem esguio e sempre vestido em roupas escuras. Ambos, o estranho e o seu Expedito, entraram e minutos depois o homem foi embora como de costume. Um dos vizinhos mais próximos tentou abordar o suposto neto para perguntar se havia algo de errado com a saúde do antigo morador, mas segundo o testemunho deste vizinho, o homem sombrio apenas se voltou para o vizinho curioso e colocando o dedo indicador à frente dos lábios fez o característico sinal de silêncio; não disse nada, entrou no carro e foi embora. O vizinho ficou impressionado com a palidez do homem e até meio assustado com sua presença obscura, além de intrigado com aquela atitude estranha. Entretanto ninguém fez caso ou podia imaginar o que realmente estava acontecendo; o fato foi que aquela foi a última vez que eles viram Expedito. Até aquela manhã.

Depois de voltar até o veículo da defesa civil, os homens munidos com um pé-de-cabra acabaram por arrombar a porta da frente da casa, entraram juntamente com os paramédicos  e ficaram surpresos com o estrago que as águas barrentas tinham feito no interior do lugar. Os móveis estavam cobertos de uma película feita da mistura de terra, barro, lama e outras coisas que não conseguiam identificar; mesas, cadeiras, parte da estante e todo o chão da casa também estava do mesmo jeito. O lugar ficou parcialmente revirado, provavelmente as coisas que boiaram durante a inundação haviam trocado de lugar e se espalharam pelo cômodo e pelos outros cômodos.
Os paramédicos vasculharam cômodo por cômodo até encontrar o dono da casa, não eram muitos lugares para verificar; a preocupação maior era que o Sr. Expedito tivesse sofrido algo por causa de sua suposta doença, algo que o incapacitara permanentemente impedindo-o de conseguir se defender da enxurrada, erguendo os móveis ou mesmo pedindo por ajuda.
A casa pequena possuía apenas um quarto, uma sala, banheiro e cozinha, tudo nos moldes antigos das construções que já não se fazem mais, o teto possuía um forro de madeira e o chão era composto por incontáveis tacos outrora envernizados, que já estavam mais do que apodrecidos.
A cozinha estava tão suja quanto o restante da casa e a porta que dava para os fundos era escorada pelo lado de dentro por uma velha geladeira cujo motor queimara provavelmente quando engolido pela água e a lama.
Uma verdadeira bagunça se fazia dentro da casa; o espelho do banheiro estava quebrado no chão e coberto pelo que restou da lama; havia muitos resquícios de sangue já coagulado, mais em grande quantidade na pia, como se o dono da casa tivesse expelido o líquido ali ou cuspindo, ou golfando. Aquilo deixou os profissionais de saúde ainda mais temerosos quanto ao bem estar do único ocupante da casa; talvez ele tivesse sofrido alguma reação ou um ataque ali no banheiro. Não sabiam ao certo.
De repente alguém gritou do outro cômodo:
_ Aqui está ele! _ Disse um bombeiro.
Ele estava no quarto deitado sobre a cama, mãos cruzadas sobre o peito e aparentemente sem sinais vitais; rapidamente os paramédicos iniciaram os procedimentos, mas não conseguiram nada; não havia respiração, pulso, nem batimentos cardíacos, nenhum indício de atividade respiratória, as pupilas não tinham mais nenhum reflexo, ele estava frio, a pele branca como uma folha de papel, os cabelos escassos penteados para trás e tanto as bordas dos olhos quanto da boca e extremidades dos dedos ostentavam uma coloração tênue arroxeada.
Os paramédicos se utilizaram de uma das macas que tinham na ambulância para fazer a remoção do Sr. Expedito; levaram-no para fora onde já havia uma pequena multidão de vizinhos e curiosos. Pediram que uma das vizinhas o reconhecesse e a notícia da morte dele se espalhou rapidamente, atraindo ainda mais pessoas para frente daquela pequena casa.
A reação das pessoas foi de comoção ao vê-lo ser retirado inerte na maca, mas o que aconteceu em seguida foi o que realmente marcou para sempre todos os presentes.
Os homens da defesa civil interditaram a casa e foram conversar com as pessoas, moradores da rua, que se aglomeravam para ver o corpo sobre a maca, a fim de tentar descobrir o paradeiro de algum familiar para comunicar o ocorrido. Os paramédicos foram preparar o interior da ambulância para acondicionar o defunto e fazer a remoção, e, foi então que tudo aconteceu.
Era por volta de dez horas da manhã, o sol estava começando a ganhar força, o Sr, Expedito se moveu sobre a maca; primeiro os olhos embaixo das pálpebras, depois o corpo estremeceu; as mãos se moveram e levantaram levemente. Algumas pessoas reagiram ao ver que ele não estava morto, houve um som generalizado no meio das pessoas, um murmúrio de espanto que aumentou tão velozmente quando ele ergueu parte do corpo pálido e se sentou.
O Sr. Expedito numa reação que lhe parecia natural, levantou a cabeça e olhou para o sol, em seguida tentou proteger os olhos da luminosidade soberana do astro rei; a pele muito branca tinha adquirido quase que automaticamente um tom amarronzado que escurecia mais e mais a cada instante; ele fez uma careta dolorosa, parecia estar sentindo muitas dores. Os paramédicos se interromperam no movimento de ir até o homem sobre a maca para prestar algum atendimento; eles tiveram medo do que estava acontecendo; um medo inconsciente e violento.
Expedito olhou para suas próprias mãos que enegreciam rapidamente, ele tremia quase convulsivamente; tentou correr novamente para dentro de casa e fugir da luz, mas as pernas provavelmente fracas, não foram capazes de cobrir o percurso; ele caiu, tentou se arrastar pelo chão enlameado. A imagem daquele homem, em agonia, agora com a pele negra como carvão lutando para viver enquanto se arrastava em meio ao lamaçal foi algo fora do comum, completamente insólito e tremendamente assustador; tanto que ninguém teve coragem de sair do seu lugar.
Os cabelos outrora bem penteados, agora tinham caído por completo; a pele escurecida como se tivesse sido carbonizada, estava seca e estalava. As pessoas ali presentes não sabiam ao certo se os estalos que ouviam eram provenientes dos ossos da criatura que antes fora o Sr. Expedito ou se dos seus próprios dentes forçados uns contra os outros numa atitude frenética de repulsa e assombro.
O fato é que aquele ser que se arrastava pelo chão não teve forças suficientes para chegar novamente dentro da casa e assim se refugiar do sol que o castigava tão violentamente; por fim, acabou gritando; um grito entre dentes e sufocado antes de parar completamente. Parecia que o sol era uma espécie de incinerador natural que o dizimou em poucos instantes; foi talvez a visão mais aterradora que cada uma daquelas pessoas já teve ou teria na vida. Um homem se tornar algo indistinguível como um monstro e em seguida ser reduzido a pó que se misturou na lama espalhada no quintal. O Sr. Expedito havia desaparecido por completo, já não havia vestígio algum de que um dia tal pessoa tivesse existido, exceto pela mancha negra onde a lama e as cinzas se misturaram.

Todos os vizinhos ficaram aterrorizados, mas alguns poucos foram além do terror; e se perguntavam: O que havia acontecido ali? E. Quem era aquele único “familiar” que visitava Expedito sempre sob a proteção das sombras da noite?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Noite vermelha

Os morcegos estavam por todo lado, um dos caçadores tombou tão rápido que os outros nem perceberam o que estava acontecendo. Um deles tentou atirar para várias direções, mas logo viu que não acertaria ninguém. Esse caçador estava perto do carro e tentou correr para buscar abrigo dentro dele, era um SUV médio que usavam para caçar as criaturas da noite, mas não teve tempo de chegar no veículo, foi abatido por um vulto escuro que o agarrou, quebrou seus braços e o atacou bem no pescoço. Quando o corpo do segundo caçador tombou os dois que restaram finalmente compreenderam o que estava acontecendo. Eles tinha se reunido ali como faziam uma noite todos os meses para se agrupar e sair pela madrugada caçando criaturas que vivem entre os vivos sem ser vivos; ou seja, eles caçavam vampiros e perceberam que naquele momento algum vampiro os havia encontrado para se vingar. _O que esta acontecendo aqui? Onde estão os outros? _ perguntou um dos caçadores que ainda não tinha percebido a

Escravos da morte

Mais um carnaval acabou, esta é, sem dúvida, a melhor semana para todos os noctívagos como eu; são noites em que podemos sair pelas ruas sem ter a menor preocupação em manter nossa existência em segredo, porque as pessoas comuns estão tão bêbadas e inebriadas com todo o maravilhoso caos criado por sua alegria desesperada que nem mesmo se dão conta de que são apenas uma multidão de vítimas esperando para serem encontradas e abatidas. Eu me chamo Jezhrabel, neste momento estou em minha casa, sentada sobre minha cama e alimentando meus animaizinhos com meu próprio sangue retirado de um longo corte superficial que faço em minha garganta; depois deixo que meus bichinhos, dois gatos que estão comigo desde o início, bebam um pouco, faço isso uma vez ao mês e eles se tornaram criaturas tão longevas quanto eu. A verdade é que prefiro meus monstrinhos às pessoas e é por este motivo que vou contar como foram meus dias de carnaval na cidade maravilhosa. Moro no Rio de Janeiro desd

Baile de carnaval

Rosana, Mirela e Andréa planejaram a viagem de férias perfeitas durante dois anos, juntaram dinheiro e finalmente conseguiram concretizar o sonho de passar o carnaval na Cidade Maravilhosa, o Rio de Janeiro parecia estar completamente envolto em uma aura de festa desde o aeroporto. Elas chegaram à cidade vindas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e logo no caminho para o hotel em Copacabana puderam presenciar vários blocos de rua desde o aterro do flamengo, passando pela enseada de botafogo e mesmo na Avenida Atlântica, que é a principal rua do bairro mais famoso da cidade. Logo que chegaram ao hotel deixaram suas malas no quarto e passaram a tarde na praia, aproveitando o sol do verão carioca para ganhar um tom de pele mais bronzeado, beberam algumas cervejas, almoçaram, caminharam pelo calçadão da orla até próximo ao Forte de Copacabana, e tomaram banho de mar, é claro. Durante o tempo em que estiveram na areia, elas presenciaram vários blocos extremamente animados pa