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Nunca um de nós

_Quem são estas pessoas?_ Perguntou Agamenon assim que entrou no escritório de casa e o viu cheio de gente.
Seu filho estava sentado numa das confortáveis poltronas de veludo que faziam parte da decoração de sua sala particular.
Dentro do escritório estavam também mais três pessoas. A primeira, um homem trajado com um belíssimo terno feito sob medida, com caimento perfeito; trazia no pulso um relógio IWC e uma corrente do que parecia ser ouro branco, possuía cabelos castanhos escuros e olhos negros como pedaços de carvão; do bolso frontal do paletó, pendia uma corrente fina dourada que combinava com o prendedor de gravata, provavelmente tal corrente estava presa a um outro relógio de bolso daqueles modelos antigos feitos somente pelos mestres na arte da relojoaria.

O filho de Agamenon apresentou este primeiro:

_Pai._ disse ele_ Este é Tymoti Lane Argaiol. Mas pode chamá-lo de Timóteo.

Agamenon sempre foi um homem cauteloso quanto a conhecer novas pessoas, e principalmente em se tratando das mais recentes amizades de seu filho Dionísio. O pai não respondeu, limitou-se apenas a andar através do cômodo para sentar atrás de sua mesa enquanto encarava os outros dois estranhos.
A segunda era uma das mais belas mulheres que Agamenon, no auge de seus setenta anos, havia visto, e não foram poucas; ela aparentava ter entre vinte e cinco e trinta anos; trajava uma roupa preta que delineava seu corpo com perfeição, era morena com os cabelos tão escuros que quando tocados pela luz pareciam refletir um brilho azulado, olhos de um verde-água límpidos e vivos; era como olhar para duas pequenas jóias. Ela sorriu sorrateiramente pelo canto dos lábios pouco pintados, porém grossos e belos. O velho logo percebeu que encerrado naquele sorriso havia muito mais malícia do que ela queria demonstrar; ele era muito bom em reconhecer pessoas se escondendo por trás de máscaras, fizera isso durante praticamente toda a vida e se tornou um especialista.
Seu filho também os apresentou:
_ Esta é Diana Benjamim Walker._ disse apontando com a mão para a mulher._ Diana, este é meu pai; Agamenon; um dos maiores caçadores.
Diana trazia no pescoço um adorno no mínimo diferente e o pai de Dionísio logo se atentou para aquilo; um cordão prateado em cuja frente estavam penduradas duas grandes presas de algum tipo de animal de grande porte, um leão ou tigre talvez.
_ De que animal são estas presas que adornam seu colar menina?_ Perguntou presumindo que fossem presas de verdade.
_ Pertenceram ao meu pai.
Dionísio sorriu com a resposta da mulher.
O terceiro membro daquele estranho grupo era um rapaz tão jovem quanto seu filho, talvez até mais jovem; por volta de vinte anos. Vestia roupas bem menos sofisticadas que seus colegas, camisa preta, calça jeans muito desbotada e tênis rasteiros sem marca aparente; a única coisa realmente estranha no jovem era um conjunto de tatuagens reproduzindo um desenho tribal extremamente complexo em seus braços, que, Agamenon vira há muito tempo e não sabia o significado.
Dionísio tomou a frente e apresentou por fim este jovem.
_ E este é Sebastiam Crianom. Pai.
Aquele cujo nome era Timóteo se aproximou da mesa de Agamenon e com um sotaque inglês bem carregado disse algumas palavras que inquietaram a mente treinada do homem sentado.

_É uma grande satisfação ser apresentado à sua pessoa. Seu filho é um homem com muito potencial e bem conceituado em minha família; breve terá grandes responsabilidades no nosso mundo._ disse estendendo a mão de forma cordial para um aperto de mão que não foi correspondido. E continuou_ Como você já deve estar imaginando, fomos nós que presenteamos seu filho com, digamos, a nova forma de vida que ele tem hoje.

_ Ou seja, é a vocês que devo agradecer por terem seduzido, enganado e matado meu filho._ disse secamente encarando de maneira fria o outro.

Timóteo riu e sentou-se na cadeira à frente de seu anfitrião mesmo sem ter sido convidado a fazê-lo.

_Seu filho parece morto? Não parece morto pra mim. Pelo contrário, agora ele pode fazer coisas que nunca poderia antes, e nem você, nem nenhum outro homem poderiam conceder o presente que dei a ele.

_Seu filho é imortal agora._Retrucou Diana de um canto da sala; ainda sustentando aquele sorriso malicioso.

Agamenon apertou calmamente os olhos com os dedos polegar e indicador como se quisesse espantar uma dor de cabeça.

_Você chama isso de imortalidade._ disse com desdém_ Eu digo que conheci mais imortais do que qualquer outra pessoa da minha geração, e, no entanto, estão todos mortos. Vocês tornaram meu filho numa aberração do inferno.

Timóteo cruzou as pernas com a clássica elegância britânica e apoiou o cotovelo direito sobre o descanso para braço da poltrona, em seguida repousou o queixo sobre o punho direito fechado.
Enquanto isso Sebastiam mexia na estante apinhada de livros atrás de todos, junto da porta, sem dar muita atenção às coisas que estavam sendo ditas na sala.
E agora foi a vez do próprio Dionísio se manifestar.

_ Não sou uma aberração pai, agora sou um ser perfeito; penso mais rápido, enxergo mais longe, pressinto acontecimentos, meu corpo tornou-se praticamente invulnerável, minha audição se amplificou, posso ouvir pessoas conversando a um quarteirão de distância. Posso sentir o medo dos mortais. Sinto tanta força correndo na minha corrente sanguínea que acho que posso fazer qualquer coisa.

_ E pode._ Afirmou Timóteo bruscamente._ Seu sangue agora pertence a uma das mais puras linhagens de “noctívagos”_ fez o sinal das aspas com os dedos das mãos_ que existe; Dionísio deixou de ser simplesmente seu filho, deixou de fazer parte de uma simples família mundana e passou a ser meu filho também, membro da minha linhagem, sangue do meu sangue, hoje e para sempre. Ele usará o sobrenome que marca nossa família desde o século XVII.
Aquilo causou um calafrio em Agamenon.
Sebastiam pareceu achar algo interessante nas prateleiras, retirou um livro com capa dura e antiga; em seguida levou para Timóteo ver do que se tratava.

_ Vejo que você tem procurado estudar nossa, digamos, raça._ disse Timóteo_  Sabe. Não é algo que esteja documentado em muitos livros, afinal, quem sabe nossos segredos não costuma escrever porque são como nós e tudo o que se fala a respeito na literatura é romanceado demais.

Diana aproximou-se de Dionísio e o abraçou enquanto Timóteo falava:

_ Livros como esse que se propõem a falar sobre o que chamam por aí de “filhos da noite” são apenas uma sucessão de bobagens, mas se você de fato quiser conhecer nossos segredos ou saber como ajudar seu filho a partir de agora; eu posso oferecer uma forma, existe um caminho para isso e eu não ofereceria a você se Dionísio não nos fosse tão especial.

Agamenon se debruçou sobre a mesa, na direção do que antes falava e surpreendeu Timóteo, pois o encarava profundamente nos olhos como poucos vivos haviam feito. Embora idoso, ele demonstrava frieza suficiente para manter seus pensamentos alinhados frente àqueles monstros que provavelmente deixariam inquietos muitos tipos de indivíduos por mais centrados e controlados que fossem.
Agamenon era velho e estava impedido de realizar sua vocação; as dores físicas o debilitaram acumulando-se em anos e anos de caçadas noturnas, mas ele ainda era um homem muito altivo; as criaturas diante dele estavam realmente impressionadas com a forma como ele estava se portando diante daquela conversa, principalmente tratando veladamente de um tema tão obscuro, afinal, a vida do velho caçador dependia do desfecho de sua conversa.

_ Eu conheço muitas histórias sobre mortos-vivos, bebedores de sangue; homens e mulheres que passaram a vagar pela noite; estudei os mitos nas mais diversas culturas; egípcias, helênica, africana, ibérica e outras. Tenho uma missão a fazer e pretendo cumpri-la, é uma pena que meu filho, sangue do meu sangue, a quem eu preparei para me suceder como caçador de “seres”_ Fez o sinal das aspas com os dedos das mãos numa clara demonstração de ironia à forma como Timóteo falava também usando aquele sinal_ como vocês aqui no Rio de Janeiro; e sinto que ele tenha escolhido o lado errado da guerra. É realmente uma pena que ele tenha se tornado um de vocês, porque mais cedo ou mais tarde ele vai ser achado pela luz do sol, pelo fogo ou pelas lâminas de algum caçador e será destruído; assim como todos vocês também.
Timóteo, Diana e Sebasteim riram.
Dionísio se incomodou com as palavras do pai, deixou os braços afetuosos de Diana e se aproximou da mesa.

_ Você está falando como um louco, Pai!_ Ele bateu com as mãos sobre a mesa com força numa atitude de raiva_ Nós somos superiores.

_ Superiores aos homens._ completou Diana.

_Superiores aos anjos._ emendou Sebastiam.

_Nós somos deuses!_ arrematou Dionísio.

Tymoti Lane Argaiol se deleitava observando aquela cena; seus olhos mudando de cor involuntariamente, repousavam fixos sobre o pai de seu mais novo discípulo.

_ Coloquei seu filho encarregado de um território que, julgo, você vai gostar. Ele será parte de uma congregação formada por gente como nós em uma cidade da baixada chamada Nova Iguaçu; este lugar tomou muita visibilidade na mídia nos últimos anos, além do que, a regra é: A família que se estabelecer primeiro tem a primazia sobre o lugar. Seu filho será o “sacerdote” de nossa religião, o príncipe da cidade e o juiz de tudo o que ocorre naquela região. Acredite é um ótimo começo para um neófito; ele terá poder, meu velho, para governar como bem entender e isso poucos conseguiram.

Sem resposta alguma Agamenon resumiu toda a sua indignação em única uma pergunta.

_ O que vocês querem de mim?

Uma aparente felicidade transpareceu na face de todos os visitantes.

_Seu Tempo está terminando e mesmo contra os preceitos que temos seguido há séculos, venho lhe oferecer o dom que dei ao seu filho. Posso perpetuar seus dias, dar força, invulnerabilidade e todos os privilégios de ser um de nós; tudo o que o sobrenome Crianom tem para oferecer._ Disse Tymoti.

_ Quero que você torne-se um de nós pai, compartilhe do poder que há no sangue e viva através dos tempos até que o dia do julgamento aconteça, se é que você realmente acredita nisso. O que você tem a perder?_ concluiu Dionísio.

_Minha alma. _ Foi a resposta fria e seca do pai.

_Pense bem._ observou Timóteo_ O que estamos fazendo aqui é algo sem precedentes em nossa família, não se convida pessoas para se tornar como nós. Principalmente pessoas como você, que nos atormentou por tantos anos.

_Imortalidade? Com o preso de me tornar um escravo da noite, viciado em sangue, assassino! Seu tolo, já vi anjos, demônios e toda sorte de coisas que habitam entre o céu e a terra, mas só um ser tem valor real nesse emaranhado universal; o homem, mesmo sendo mau e desesperadamente corrupto. Não quero seu dom, ou devo dizer, maldição, realizarei meus atos até quando meu corpo aguentar e não me importo de cumprir meus dias porque o legado de um homem é seu filho e isso eu já não tenho mais.

_ Mas eu estou bem aqui pai!

_ Mas agora você não é meu filho; é uma abominação. Está livre para fazer o que bem entender de sua dita imortalidade; quanto a mim, não aceito seu convite.

Agamenon parou de falar e respirou asperamente como se aquelas palavras estivessem doendo dentro dele.
Timóteo percebeu aquilo e gostou do som. Em seguida se levantou da poltrona, não estava contrariado, mas intrigado, em sua cabeça todas as pessoas desejavam a oportunidade de vencer a morte ou enganá-la; não era o caso ali.

_Mas pa..._Dionísio foi interrompido pelo pai tão bruscamente que perdeu a voz por um momento.

Agamenon disse:

_ Saia dessa casa; você não é e jamais será bem vindo aqui novamente.

_Pense a respeito _ disse o filho logo que conseguiu falar.

Mas sabia que nunca faria com que aquele homem mudasse de pensamento, olhou para Timóteo e em seguida para os outros que saíram sem pronunciar palavra alguma.

As luzes do escritório estavam acesas, e quando a porta bateu atrás de Sebastiam que foi o último a deixar o cômodo elas piscaram rapidamente; Agamenon recostou-se em sua poltrona como se ela fosse um trono; ele estava cansado e qualquer um que o visse naquele momento de angustia íntima poderia jurar que ele estava sustentando cem quilos sobre os ombros.
Abriu uma gaveta da mesa que estava em sua frente retirou uma caixa que continha seus antigos artefatos de trabalho, já não os usava mais, porém mantinha-os sempre por perto para lembrar das coisas pelas quais já tinha passado.
Abrindo-a visualizou rapidamente a estaca de metal polido e o martelo que tantas e tantas vezes já tinham sido usadas no passado; fechou e guardou tudo rapidamente. Tempos atrás ele tinha pensado em presentear seu filho com aqueles objetos, era uma tradição familiar que não mais seria observada, seu filho tinha cruzado uma linha sem retorno e já não podia mais ser um caçador, pertencia ao outro lado.

Agamenon, por um momento chegou a considerar a proposta que tinha recebido, mas isso seria trair tudo o que ele já tinha feito na vida. Não poderia cometer o erro terrível de seu filho mesmo amando-o, mas também não conseguiria viver sabendo que Dionísio estava lá fora, nas noites, fazendo tudo aquilo que os vampiros fazem.

Infelizmente agora ele era somente semelhante a um homem, breve ele começaria a fazer exatamente o que se esperava de monstros como eles; e mesmo assim Agamenon não teria coragem de eliminá-lo. Teria que torcer para que outro o fizesse, porque era melhor morrer do que existir preso a uma quase-vida amaldiçoada. Havia tomado sua decisão final.

Abriu outra gaveta e vagarosamente retirou uma arma cujo tambor estava carregado com seis balas prateadas, sem exitar ele levou a arma até a cabeça e disse baixinho:

_Eu nunca seria um de vocês.

Em seguida, puxou o gatilho.

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