10 de novembro de 2009; 22 horas e 30
minutos.
Irineu achou muito interessante o modo
como as pessoas se comportaram no exato momento em que as luzes se apagaram;
homens e mulheres, todos, pegos de surpresa pelo fenômeno pararam por um
segundo. As luzes piscaram, diminuíram de intensidade, voltaram ao normal e
finalmente sumiram completamente.
Todos os postes, casas, lojas e prédios
foram tomados instantaneamente pela mais absoluta escuridão até aonde a vista
alcançava, as pessoas, escravos da eletricidade ficaram aflitas; por alguns
momentos, não sabiam o que estava acontecendo, pensavam e agiam de modo
desencontrado e sem rumo até que aquela sensação esquisita deixada pela total
falta de claridade ficasse para trás.
Ele por sua vez olhou ao redor, feliz, a
escuridão é e sempre foi seu habitat natural, luzes sempre o incomodaram, a
claridade por mais tênue que fosse feria-lhe os olhos. Retirou os óculos
escuros que costumava usar mesmo de noite. Enquanto havia luz, as pessoas
notariam e certamente achariam estranho um homem andando com óculos de sol em plena
noite da cidade, mas no meio das sombras e com todos tentando adaptar a vista
àquela condição que para os homens é adversa, ninguém notaria. Mesmo assim
Irineu retirou o objeto da face e guardou no bolso da calça tentando se
misturar.
O ambiente ao redor estava claro como o
dia, pelo menos para ele; sabia que as pessoas não podiam enxergar com tanta
nitidez nas sombras, mas ele não era uma pessoa já fazia muito tempo; a noite
era seu território, as madrugaras eram suas amantes e Irineu gostava de andar
no meio da sociedade; ele observava o comportamento dos indivíduos que na noite
costumavam agir de modo muito diferente do dia. Era como se as pessoas
libertassem um outro lado de seu ser, mas não naquele dia, embora aquela
escuridão providencial fosse deliciosamente revigorante para ele, era
tremendamente estranha para as pessoas comuns.
Os carros que passavam pela rua eram as
únicas fontes de luminosidade artificial ainda vivas e ao enfrentar os faróis
de um automóvel Irineu rapidamente recolocou os óculos, não arriscaria sua
visão. Além disso, a luz da lua também serviria para iluminar um pouco a
escuridão deixando os mortais ligeiramente mais confortáveis. Todas as outras
coisas móveis e imóveis tinham adquirido uma tonalidade, uma nitidez e uma
beleza impar imersas nas sombras, mas só ele e talvez outros como ele
espalhados pela cidade poderiam saborear tal cenário.
Pouco a pouco, outras luzes começaram a
surgir como grandes vaga-lumes multicoloridos em toda parte; eram azulados,
esverdeados, amarelados e alaranjados. As pessoas estavam sacando de seus
telefones celulares a fim de conseguir um pouco mais de luz, algo que
mantivesse seus medos inconscientes e irracionais aprisionados e distantes.
Em pouco tempo por meio dos telefones
vieram às notícias; Rio de Janeiro e mais dezessete estados além de parte do
Paraguai estavam na mais completa escuridão; tratava-se de um apagão de
proporções poucas vezes vistas no Brasil.
Irineu caminhou mais um pouco, chegou a um
ponto de ônibus, verificou o relógio no pulso; um homem jamais seria capaz de
saber das horas naquelas condições, seu relógio não era digital, tampouco
acendia, mas Irineu enxergava claramente. Passava das vinte e três horas, ele
procurou um ponto ainda mais escuro para ficar, um lugar onde os faróis dos
carros não o alcançassem e quando finalmente percebeu um ponto ideal, lá ficou,
ouvindo as conversas dos transeuntes desavisados.
De repente uma pessoa se aproximou dele
dizendo todo tipo de palavrões e se referindo a empresa prestadora de serviços de
iluminação como uma exploradora que só queria o dinheiro das pessoas, mas não
era capaz de manter a iluminação pública funcionando. Era uma mulher quem
falava e mesmo sem conhecê-lo ou saber da natureza do ouvinte ela quis puxar
conversa.
_ Era só o que faltava; como vou para casa
agora?_ Perguntou a mulher sem querer, de fato, uma resposta.
Irineu sorriu pra ela, seus dentes
alongados não foram vistos pela mulher que pensava estar falando com uma pessoa
normal e não com um vampiro. Ele a passou em revista com os olhos desde a
cabeça até os pés; ela era muito normal, não chamou a atenção dele para outros
fins, não possuía atrativos, pelo menos na escala dele, mas conversar era algo
que Irineu sempre gostou de fazer com qualquer um mesmo antes de começar a
caminhar entre os vivos e os mortos.
_ Eu gosto do escuro_ ele respondeu
tentando ironizar.
_ Um calor infernal nesse Rio de Janeiro,
durante o dia deu quarenta graus, sabia? _ Disse a mulher
Há muito tempo ele não via a luz do dia.
Uma pequena fila se formava lentamente
onde eles estavam, outras pessoas vinham aguardando o transporte coletivo, elas
conversavam, tentando se consolar mutuamente pela falta de luz e aproveitavam
para extravasar todas as suas frustrações; Irineu conversava com a mulher em um
canto mais reservado, mas ouvia todas as vozes ao redor distintamente; sabia
exatamente o que cada pessoa a seu redor estava falando.
A noite prometia calor também, aquela
falta de luz pegou as pessoas que iam para casa tanto quanto as que queriam
descontrair nos bares espalhados pela cidade, de forma desprevenida; sem
energia elétrica, a humanidade se via imersa a contragosto numa espécie de
vácuo que remetia às épocas quando a tecnologia e as facilidades do mundo
moderno não tinham tanta influência sobre a sociedade, épocas onde pesadelos
noturnos como Irineu vagavam e governavam sem restrições.
O problema é que a sociedade já não sabe
mais viver sem certas facilidades modernas, mesmo que fosse por pouco tempo, as
pessoas estavam se vendo totalmente confusas. E sempre havia aquela clássica
insegurança velada no coração de todos que dizia: “Quanto tempo isso vai
durar?”.
Outra pessoa se aproximou e disse:
_ Eles fazem isso de propósito! Desligam a
força com o pretexto de economizar.
Era muito interessante essa interação com
os vivos, embora Irineu fosse adepto de abordagens menos sutis, e gostasse
muito da adrenalina de uma boa noitada em busca de emoção, diversão, prazer e
alimento; naquela noite seria apenas um mero espectador observando e tentando
entender o raciocínio dos outros; um predador estudando suas presas; nos
últimos anos sua relação com pessoas era unicamente restrita ao combate ou as
volúpias; não se lembrava mais como era ser um homem totalmente vivo, só lhe
restaram poucos prazeres compulsivos.
_ Isso é culpa do governo! _ Insistia o
transeunte enfurecido.
A mulher olhava para essa terceira pessoa
e voltou-se para Irineu que concordava meneando a cabeça só para incentivar o
outro a continuar enfurecido; era engraçado.
O outro homem parou de reclamar um minuto
e disse:
_E esse ônibus que não chega. Vocês estão
indo para aonde?
A mulher rapidamente respondeu:
_ Nova Iguaçu.
Ambos se voltaram para Irineu e finalmente
perceberam ou deram-se conta de que ele permanecia com os óculos escuro mesmo
com a mais completa escuridão. Era algo estranho, mas já tinham visto coisas
mais estranhas nos dias atuais e não se prenderam em tal detalhe.
Ele respondeu:
_ Eu também.
Ela disse:
_ É caminho.
Os vivos continuaram conversando sob o
olhar atento de Irineu até que o ônibus chegou; rapidamente a fila se tornou
uma correria para entrar no coletivo e o homem de óculos escuros se retirou
para longe da confusão. Ainda não era hora de voltar para casa, a noite estava
apenas começando, ia procurar um pouco de diversão, caminhar mais um pouco no
meio dos vivos, se apaixonar mais uma vez, drenar alguma mulher ou homem da
noite, arrumar briga em algum lugar e assustar religiosos.
Ele sorriu; feliz porque havia recebido um
presente naquela noite, podia transitar livremente pela cidade sem se preocupar
em se proteger da luz, a luz o limitava e o tornava menos acurado; a noite era
sua mãe; as sombras sua religião e a escuridão era o seu caminho.
Naquela noite faria com que qualquer vivo
que cruzasse o seu caminho enxergasse a face de um dos pesadelos mais antigos
da terra.
Agradeceu às sombras e prosseguiu.
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